pensar no futuro é mediar o agora
- Cris Rosa
- 2 de set. de 2022
- 3 min de leitura
pensando no acúmulo que sou de relações bonitas — familiares, de amizade e sexo-afetivas — notei que, há um tempo, bem antes de circularem conversas sobre comunicação não-violenta e responsabilidade afetiva, não abro mão de uma boa conversa sobre o andamento da relação. se algo me incomoda, eu digo. nem sempre as relações duram, muitas delas já se foram (meio “amor futuro” nos dizeres caetânicos). mas também, se acho algo incrível e me comovo, falo. digo do que me afeta porque não há construção sem toque e sem palavra. palavra é gozo, tenho dito, gozo é palavra.
na família e nas amizades, relações mais facilmente vistas como “para eternidade”, costuma chegar bem esse negócio-diferente de d.r. desmedida. pela falta de costume e de repetição, talvez. é fácil regular frequência afetiva nesses casos, porque o nosso olhar capitalístico colonial não-comunitário nos ensina mesmo a torná-las diferentes daquelas em que o sexo entra. daquelas em que a apropriação direta do corpo entra, diria. e nessas últimas, qualquer que seja a conversa tende a se direcionar a uma ideia pautada na “intenção de futuro”. sinta a inversão: o corte entre umas e outra é o tempo.
ao que parece, qualquer tentativa de ajuste é, hoje, tratada como um investimento de médio a alto risco — e a maioria não tem tempo pra arriscar, entregar, depositar. para investidoras conservadoras, é preciso pelo menos um 105% CDI, alguma garantia de continuar no mesmo ritmo, aí vale a pena. caso contrário, melhor vazar. é preciso partir das certezas, do sim, do fruto que dará no futuro, mesmo que o que se aponte para o baixo risco seja um pequeno rendimento. estamos com medo. pouco é melhor que nada, algo se ganhará.
ninguém quer investir:
conta que não fecha.
acompanho as avançadíssimas discussões sobre não-monogamia e entraves semelhantes são encarados fora da sua romantização: ninguém muito disposta a lidar com as entrelinhas de um encontro. geral julgando afeto como emoção demais. ninguém pensando no significado de afetar. sexo ruim. frustração. algoritmos desajustados. desgaste. cansaço. treta. desistências. choro e apatia. [não é à toa que esses temas são tão frequentes por lá, nunca é].
a transição da adolescência para a adultez, para quem ainda vive nos rastros do retorno de saturno, quase sempre é pega na crise entre o possível e o aceitável nas micro relações. cada vez em menor número e intensidade, a propósito. cada vez mais resguardadas e catadas nos dedos. quantas relações saudáveis conseguimos sustentar ao mesmo tempo nesse mundo em que parar é privilégio?
dia desses, lecionando sobre o processo de urbanização da região metropolitana de Salvador para estudantes recém saídas do ensino médio, propus um exercício de imaginação das cidades. ao invés de partir dos “problemas urbanos”, optei por lançar a questão: que cidade vocês gostariam de habitar? coisas lindas vieram e, nas possibilidades de futuro, refletimos sobre os problemas do presente. que relações gostaríamos de experienciar? o que seria, para cada uma de nós, uma relação saudável e sustentável? [fora toda a ideia midiática hollywoodiana que ainda coloniza o nosso imaginário — é assustadora essa presença]
ninguém quer imaginar:
conta que não abre.
gosto de trazer os temas associados à natureza para pensar as relações interpessoais porque con.vivendo com as plantas percebo, cada dia mais, a relação entre indivíduo e comunidade. de especificidade e complementação. de suporte e crescimento mútuo. de diferença e aproximação. há mais da natureza em nós do que permitimos — e tudo está sendo dizimado ao mesmo tempo.
a porta de saída das relações, há tão pouco tempo nos apresentada/permitida, é um ganho. saldo positivo no crescimento da raiz essa coisa de se colocar pra fora e respirar — pneumatóforas, te amo! -, mas estamos criando mecanismos de captação de nutrientes? já temos essa tecnologia? entramos em outros lugares? o que entrelaça o saudável ao sustentável?
ninguém quer sentir dor:
conta que não fecha.
pergunto-me frequentemente sobre a morte do ideal, a dor e o sentido real de “construir relações”. toda dor é doença terminal? porque, veja: há um gasto de energia no encontro. é preciso estar disposta a entregar alguma coisa, a barganhar algum buraco, e talvez doa.
no olhar atento para o que nos violenta há espaço para sentir agulhas entrando em outro corpo, engatilhando inseguranças desconhecidas e arranhando machucados? há, ao lado da porta de saída, um checklist de possíveis equívocos, ou uma chave de retorno — para si, ao menos -, ou um ponto de coleta de sentimentos ruminados (para garantir o lembrete “é preciso mastigar algumas vezes antes de engolir”)?
essa coisa de medi.ação é que nos pega.
adoraria trazer respostas, mas a conta aqui não fecha.
댓글