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dia da consciência negra: um homem negro espancado até a morte

nos últimos tempos eu tenho tentado falar de amor, pensar em amor, pra tentar sair dessa vida nos limites que a gente vive quando tá completamente imersa na realidade. ontem descobri na terapia que a realidade me enjoa, é enfadonha, tem muito pouco dessa fantasia toda que eu crio aqui na minha cabeça e, nesse contexto, criar histórias de amor saudáveis e tranquilas tem sido um suspiro, um afago, que além de toda música gostosa que tem se aproximado de mim, é o que tem me abraçado neste momento do país.

hoje eu acordei pensando no mar, na chuva, nessa água toda se encontrando depois do mormaço, mas logo que olhei a internet vi a notícia de que um homem negro foi espancado até a morte num supermercado gigante. de novo essa história? eu lembro de luana barbosa, de george floyd, de miguel, de joão pedro. eu me sinto em kindred, me sinto indo e voltando e ao mesmo tempo não saindo do lugar. hoje é 20 de novembro, dia da consciência negra. curioso como parece que eles ficam marcando os dias, as horas, pra criar uma afronta com a gente. e eu, que tinha ido dormir com umas memórias gostosas, levantei com as memórias de raiva, de dor, de ódio que tudo isso me causa, mas que na maioria das vezes eu não sei nem o que fazer além de querer sair correndo pela rua e socar o travesseiro.

em 2017 eu escrevi assim no meu diário:

“nós precisamos o tempo todo segurar a onda. sobretudo nós, mulheres negras, com caras fortes e corpos grandes. esses corpos grandes, lidos como guerreiros também são frágeis e eu tô cansada de segurar as ondas. hoje é 20 de novembro e eu tava numa desgraça de um evento completamente branco e elitista. sentar naquela mesa um dia pra que? dá vontade de explodir essa desgraça junto com o discurso de “liberdade de expressão acadêmica” lançado pelo reitor. homem, branco.

é tudo pra foder com a gente, e até quando não é, atinge. meu tio tá com uma desgraça de um tumor imenso, porque demorou pra ir ao médico e, quando foi, escondeu os exames. por que? a desgraça do patriarcado. a desgraça da construção da masculinidade negra que não permite sequer um minuto de fragilidade. de humanidade, digo. não permite pra ele, e não permite pra mim também, porque eu sou uma mulher negra. e “eu não sou uma mulher?”

não tô querendo que me enquadrem em qualquer padrão da feminilidade, eu quero a minha porra da minha existência garantida, porque eu sou uma mulher, desgraça! isso não diz sobre ser frágil, diz sobre ser gente. tô cansada de toda essa merda que passa o tempo todo na tv.

eu quero poder sentar e chorar, quero que a minha voz fina não seja uma surpresa e que a minha intelectualidade não seja exótica. eu não quero que a minha conta no pescoço seja olhada com estranheza numa desgraça de um espaço onde eu tenho que jurar compromisso a deus e aos homens. deus e homens! que desgraça!

li um texto sobre o racismo na construção das nossas subjetividades e tenho, desde então, percebido ainda mais os detalhes com os quais convivo diariamente e tinha fechado os ouvidos/olhos. agora fodeu tudo. agora tô sentindo tudo de uma vez e parece que não vou aguentar. não tinham me contado essa parte.

mas eu tenho, por acaso, esse direito? esse de não aguentar? claro que não, porque eu sou uma mulher negra e dizem que mulher negra grande como eu aguenta tudo. é uma desgraça!

tá todo mundo sozinho. tá todo mundo sofrendo de algum modo. todo mundo que eu digo é a gente, a gente da carne colorida. odeio essa desgraça desse sistema e tem gente falando em melhorar o capitalismo! melhorar o capitalismo? que desgraça! fiz um almoço pra o meu tio e ele amou. fiquei feliz e tão, tão triste por não poder fazer comida pra ele mais vezes. e que desgraça eu tô fazendo mesmo com meu tempo?

nesse momento eu tô deitada na desgraça de um colchão no chão, numa micro casa, botando pra fora várias desgraças em líquido. tentando transformar toda essa desgraça de tristeza em raiva, porque eu sou uma mulher negra, e mulher negra sem raiva não deve ser uma mulher negra.”

hoje eu acordei com essa sensação de desgraça. e aí eu fico pensando na frase que rondou a gente desde o início da quarentena: quem é que consegue respirar tranquilo nesse país? e que porra a gente tá fazendo além de falar falar falar? escrever, escrever? fugir, fugir… mesmo que as vezes fugir seja o melhor que possamos fazer?

hoje é 20 de novembro, dia da consciência negra, e a notícia da vez é que um homem negro foi espancado até a morte.


de 20 de novembro de 2020.

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