onde é que o lugar se constitui?
- Cris Rosa
- 2 de set. de 2022
- 2 min de leitura
Atualizado: 7 de out. de 2022
eu saí rapidinho com meu tênis azul pra ver a rua, sei lá, talvez esticar um pouco o caminho para o mercado, ir até aquela ponta que nunca mais eu tinha ido, mexer o corpo por mais que dezoito minutos fora da sala da minha casa. eu fui. segui com o fone de ouvido pela metade na tentativa de me afetar pela metade com a vida que existe do lado de fora. pip millett, som de passarinho, risada dos vizinhos: tudo até o fim da minha rua. eis que saio da bolha (minha rua é tão bolha que é sem saída - para carros, pelo menos) e chego na avenida principal, segui até o fim, passei do cemitério, da casa dos gatos, do pé de buganville rosinha e voltei. na ida já sentia vontade de voltar, chegar até o buganville foi como uma recompensa: "vou até lá pra saber se está vivo", mas o que mesmo está vivo? eu ou o buganville?
nos últimos tempos ir para a rua tem me causado desespero, tristeza, angústias das mais profundas, daquela que se tremer corre uma lágrima. eu sou uma amante da rua, do comportamento das pessoas na rua, das conversas que só ocorrem na rua, e durante muito tempo sair de casa foi uma forma de oxigenar a vida, sei lá, mexer na rotina, abrir espaço pro acaso, me permitir surpreender, estar viva. hoje estar na rua me faz sentir viva de outro jeito: se por um lado me desespero, por outro lembro que se sinto é porque ainda sou gente. tem um lugar da alienação que pode ser até considerada saudável nesse contexto todo, mas se me atingir a ponto de eu conseguir não me abalar com tudo isso que vem acontecendo, alguma coisa de mim há de ter morrido.
esses dias minha psi perguntou se me encantar era importante e eu respondi que é só por isso que não desisti de estar no mundo, mas esqueci de completar que me encantar é só uma face do sentir. que bom que existem bolhas que permitem que eu sinta coisas boas - dentro, em casa, sozinha, rindo dos meus preceitos idiotas e de mim e das minhas fantasias e das minhas conversas mega descoladas com caetano - mas essa parte sozinha não me faz sentir viva. ou não suficientemente viva. um dia minha professora de geografia do ensino médio disse assim: "a gente se faz gente vivendo gente" e eu tinha, sei lá, treze anos. nunca esqueci. o que me faz lembrar que existe mundo mesmo é estar lá fora, só que estar lá fora tem doído e não é pouco.
na geografia a gente pode estudar o lugar (que não tem sentido de localização) como uma categoria que envolve a familiaridade, o pertencimento, os afetos. durante anos, ruas como as do meu bairro me traziam essa sensação, eram lugares pra mim. hoje os afetos, marcados por tantas memórias, tem como sobressalto o medo. é possível produzir um lugar a partir dos afetos negativos? é possível pertencer ao que dói?
eis uma contradição (quase) geográfica.
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