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o dono do lugar e da cena

desde que li “olhares negros: raça e representação” de bell hooks dei uma virada no modo como analiso as produções artísticas negras e sobre a população negra. a essa altura já ouvia um pouco mais os raps-br (porque não cresci ouvindo, eduquei os ouvidos para receber um som considerado ‘ruim’ a vida toda), e foi no mesmo ano que me encantei pelo modo como Djonga propõe as reflexões sobre negritude e periferização no Brasil. gosto da maneira como ele olha pro mundo, articulando a sua relação com a rua, com a a família, com as práticas cotidianas de racismo a que está submetido e com as respostas que encontra no meio do caminho. daí em diante comecei a acompanhar o artista e as suas produções.


bom, uma introdução um pouco extensa pra dizer que: o Djonga de Heresia voltou, e voltou bem diferente, já não precisa gritar tanto pra ser ouvido, mas, ainda assim, grita. canta forte, reclama, dá uns escaldes bonitos na galera branca - nem vou me demorar em “conversa com uma menina branca”, vá ouvir.


aí tem algumas coisinhas que ganham relevos e gostaria de compartilhar. vou começar contando um causo: ontem perguntei a um dos meus estudantes que curte rap e é poeta marginal se já tinha ouvido o álbum novo e ele disse: “pró, parei de acompanhar Djonga nos últimos tempos, eu gostava do Djonga de Heresia”. me senti completamente identificada, porque quando saiu o Nu (2021), fiquei na madruga boladona: como assim Djonga mudou? né possível! engraçado que é o mesmo movimento de cristalização de culturas - tão recorrentemente questionado - que a gente reproduz quando olha pra artistas que acompanhamos sem considerar que, certamente, não damos conta de avaliar o impacto das suas produções em tempo. e isso é ainda pior se o artista é negro, porque ainda temos acesso a muito poucas referências, como diz o próprio Djonga em “até sua alma”. demorei pra ouvir com algum carinho o Nu, ainda não é um disco que ouço muito (nem aprendi todas as músicas hahahaha), mas pirei na capa e boto fé que nada mais “reflexo” do impacto do isolamento social na população negra do que aquele clima “meio fúnebre”- aí tem uma variação que dialoga com a posição de classe e se revela sobretudo no que se faz com esse clima, e ele aproveitou bem o acesso que tem, pelo visto.


agora, um pouco mais paciente com as mudanças de um artista que não tem mais dezenove anos, tem filhos, família, dinheiro no bolso e planos que extrapolam ter um carro e garantir o pão - ou “novos flows, novos planos”, noto que é possível entender muita coisa com esse “novo Thanos”.

da mesma maneira que aprendi com o Heresia e com O Menino que queria ser Deus a ter um pouco mais de sensibilidade no olhar para como os jovens negros são expostos nessa sociedade racista-sexista-capitalista, indo além das experiencias que me atravessam, é possível me permitir aprender alguma coisa sobre ser um jovem negro da periferia de uma metrópole que ascende socialmente e não desiste de construir uma representação negra positiva que vai, aos poucos, descolonizando o nosso imaginário. é possível começar uma conversa dizendo “tôbem”, por exemplo, assim como é possível dialogar com Dom Quixote e com meninas brancas num mesmo álbum sem “deixar baixo”.


uma característica bem comum nas letras de Djonga é fazer referência às suas músicas anteriores - não só ele, né?! - mas diferente dos outros discos, ele opta por referenciar trechos que lembram a sua postura mais afrontosa e consciente, como em Ladrão e em Olho de Tigre. o boy não deixa uma música passar batida sem pesar na rima, mas tem gastado bastante com os beats de Coyote e às vezes lança umas que parece que é só na brincadeira (aquele bom e velho direito de falar sobre o que quiser que costuma ser concedido a qualquer artista desde que não seja negro), diferente de outras que são uma aula completa. acredito eu que, ao referenciar músicas em que bate de frente, opta por fazer um resgate de quem ele é, dizendo “aquele Djonga também vive!”, sendo uma estratégia mais sofisticada de responder às críticas que recebeu quando lançou o Nu.


o que não dá pra deixar de dizer é que o disco te deixa sem fôlego logo na primeira audição. pique Djongador, pique artilheiro, pique falcão, com o pé no acelerador, mas sem deixar de dar aquela pisada no freio pra gente chorar um pouquinho - como em “a cor púrpura”- mas vou falar sobre essa em outro texto. tudo isso vem daquele jeito lindão de juntar emoção e razão numa parada tão tão colada que não dá pra dissociar, rompendo com a perspectiva dicotômica com a qual estamos acostumadas.


embora questione em várias músicas o significado das masculinidades negras, dá pra perceber uma viradinha de chave no modo como ele tem lidado com as suas “reproduções de padrão”, algo que vem junto com a construção de uma “paternidade preta consciente”, se é que posso chamar assim. isso se aponta lá no Nu também, com “procuro alguém” e “dá pra ser”, mas em “em quase tudo” e “a cor púrpura” vem com mais densidade, mais profundidade. Iolanda e Jorge grandinhos, o pai com mais tempo pra acompanhar o movimento, altas mudanças grafadas nas letras. no caso de “a cor púrpura” tem ainda essa referência a um filme clássico, centrado na negritude e, particularmente, em experiências de mulheres negras, outro aspecto que ele deu bastante atenção nesse álbum, o que aparece desde a capa - ainda que vira e mexe escorregue numas hipersex, mas vou passar esse pano hoje. tô aqui esperando ele citar Julie Dash no próximo, não custa sonhar, já teve bell hooks.


outra coisa chic é que ele muda as referências que cita nas rimas, trazendo umas marcas menos populares e mais luxuosas como Cartier e Delorean sem deixar de se conectar com as massas, com as frases de impacto uma atrás da outra [que fisga a geração tiktok] e referência a ex-bbbs, como PA - eu traria Bourdieu aqui pra discutir isso, mas tô sem tempo agora, só fica aí a dica do olhar pra o uso da linguagem numa produção musical mais autêntica e madura, se pá agora mais com a própria cara, já que é o dono do lugar e da Quadrilha.


adoraria seguir aqui falando mais oitocentas coisas sobre esse álbum, mas virá um texto dois depois pra falar só sobre masculinidades negras.


é isso.


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