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eu não ando só.

desde que comecei a ler conscientemente autoras negras (consciente no sentido de saber quem eu estava lendo), me deparei com uma busca incessante por mim mesma. me lembro que quando iniciei “Olhos D’água”(1), me transportava pra o fundo da casa da minha avó. ler todas aquelas histórias contadas numa linguagem tão rica quanto a das mulheres que me criaram trazia, de algum modo, a possibilidade de me reconectar com isso que elas enxergavam, mastigavam e colocavam pra fora enquanto lavavam os pratos. histórias diversas, aleatórias. elas falavam sobre tudo.

eu passei a maior parte da minha infância nesse fundo, no fundo desta casa repleta de mulheres, todas cheias de si, com vozes altas, necessidades delimitadas e desejos de viver, o que passava algumas vezes pelo desejo de ter a voz mais alta naquele espaço — porque, embora em irmandade, também havia conflitos. e faço questão de mencionar isso, não para dizer que havia grandes brigas e separações, mas porque o constructo de que ‘preto é tudo igual’, não raro, leva à uma ideia de que não há divergências, conflitos ou opiniões antagônicas num mesmo grupo. de que é tudo homogêneo. isso me deixa completamente incomodada.

estas mulheres tinham muito em comum, mas pra cada uma delas eu escreveria dezenas de blocos de notas pra descrever como me influenciaram nas suas especificidades.

retorno às autoras.

me lembro que ao ler Carolina (2) fiquei me perguntando o que era literatura, o que era escrever, se eu poderia ser uma escritora, se eu não deveria reunir tudo o que minha avó conta e colocar num caderninho pra guardar comigo, pra não esquecer da minha Carolina. lembro de que foi também aí — e veio um tsunami de referências ao mesmo tempo — que comecei a me interessar ainda mais pela história da minha família. de repente me via chegando mais cedo pra conseguir conversar com minha avó na cozinha, pra ela me contar aquela parte que faltou da outra vez que a visitei. e eu perguntava. eu perguntava muito. percebi que com essas leituras eu aprendi o jeito de perguntar, porque mais do que saber que posso escrever sobre o meu cotidiano, comecei a notar como os cotidianos da minha avó, das minhas tias, dos meus tios, montavam toda uma grande novela real em minha cabeça, e foi como se o mundo começasse a rodar de outro jeito. um embarque.

quando li “O olho mais azul” (3), chorei. me despedacei. enchi as páginas de marcadores, escrevi, desaguei exatamente como precisava naquela época. me lembro que num momento ela questiona o incômodo geral que causam as ervas daninhas, e me identifiquei porque há um tempo eu me perguntava o porquê de arrancarem aquelas plantinhas que abrem e fecham com o nosso toque lá do jardim da prefeitura. eu vi, daí, que aquela coisa toda que eu notava e que aparentemente só fazia sentido na minha cabeça, era tão devaneio quanto qualquer coisa descrita por camus(4), a diferença é que enquanto eu falo sobre a ladeira do alto das pombas, ele fala sobre a europa (sim, eu tô generalizando o trabalho de um homem branco).

eu percebi que, na maioria das vezes, o que muda não é a letra, é o corpo que produz a letra. e eu já vinha ouvindo discussões sobre isso há algum tempo, mas no período que comecei a ler mulheres negras ainda não existia esse livro do que é “Lugar de Fala” (5), nem tanta popularidade em torno da discussão sobre o corpo que escreve. não assim. não tão fácil de achar na internet, pelo menos. ou talvez eu, que tinha como fonte principal de estudo o meu curso na universidade, não soubesse de nada disso.

o que aconteceu foi que comecei a me permitir acessar outra linguagem. comecei a tentar entender as linguagens. embora eu viesse do fundo da casa da minha avó, cobra criada por mulheres que erguem a voz desde cedo, eu não conseguia decodificar. eu não dava conta de entender os símbolos, as entrelinhas, as margens. não porque eu não pudesse, mas porque quando aprendi que deveria me comunicar pelo academicês (antes mesmo de estar na universidade) me forcei a desaprender a linguagem na qual meu corpo faz lugar. isso porque quando minha avó fala, não tem só voz, tem corpo inteiro. e quando leio Conceição, eu vejo corpos inteiros se movimentando no papel.

só que essa coisa de desaprender é um babado, porque cai mais na negação da presença do que na ausência em si. eu não queria me comunicar por ela, mas ela tava ali, se balançando no meu corpo sem que eu visse. ela tava ali, se expressando nos espaços mesmo que eu não permitisse. algumas vezes ouvi “o seu jeito peculiar de defender seu ponto de vista”. do que se trata?, eu pensava. por um longo tempo não entendi, mas hoje é notório que é a bagagem da minha avó que vem comigo. e de mainha. e das minhas tias. dessas mulheres todas que me arrodeiam e me aperriam. todas elas chegam junto quando leio Conceição. ficam tudo de araque.

quando leio Dolores(6) eu penso em mim. penso na minha escrita de agora. penso que, embora história da minha avó eu carregue no corpo, tem muito de mim que pode ser dito também. porque eu não tô sozinha, não me faço sozinha nesse mundo e se, em mim, trago no mínimo a minha avó, mainha e minhas tias, falar sobre mim é, necessariamente (se não deslizo na egolombra), falar sobre esse coletivo. eu não ando só.

e eu vou e volto. vou em Conceição, vou em Dolores, volto pra mim. lembro que a primeira vez que li os poemas de Dolores, especificamente um que fala sobre o marxismo e a fantasmagoria que fazem de Zumbi, um que ela fala da mãe do subúrbio que nunca é vista como símbolo de resistência (7), levantei da cadeira e fui estender as roupas. esse é o tipo de coisa que eu faço quando a poesia chega no meu corpo, preciso me movimentar de alguma maneira, mudar de posição. vi que além do que se escreve, tem uma coisa muito maior no ato de escrever. de mulheres negras se escreverem. de ler essas mulheres.

um dia, numa roda de conversa, Angela Figueiredo falou que temos sorte de poder ouvir as mulheres que que estamos lendo, e isso, de fato, faz toda diferença. mas também não é só caso de sorte.

lembro que quando li Audre (8) pela primeira vez, achei surpreendente. tocante. mexeu comigo, me fez refletir, mas não ficou. eu não consegui me apropriar daquilo, trazer pra vida, levar pro corpo. isso logo lá no início, quando comecei a ler conscientemente mulheres negras. eu não tinha bagagem pra interpretar essa linguagem no papel. a pluralidade dessas mulheres, os seus modos de expressão eram algo que eu só tinha acessado por via da oralidade. falar diretamente sobre a coisa era algo que só me aparecia nas cartas, naquilo que era direcionado a alguém, que tinha uma especificidade. e talvez seja também sobre isso. a fala não universal de Audre conversa com aquelas que em nenhuma medida representam a universalidade, porque nós somos o oposto de tudo isso, não queremos isso. eu, com todo meu histórico de leitura de autores marxistas, não sabia como lidar com aquilo. não conseguia capturar o sentido dos usos do erótico, porque àquela altura eu não conseguiria mesmo fazer um uso dele. era caso abafado. tinha sido roubado pela neutralidade que, de tão neutra, era branca, e nem me comportava.

hoje vejo que me encontrar com essas mulheres é, na realidade, um reencontro. vejo muita poesia nisso também. uma vez que eu sigo atrás das semelhanças, das diferenças, dos casos, das prosas que as mulheres da minha família gritam no fundo da casa da minha avó, começo a entender o significado do meu ser e estar no mundo — dotado de um sentido próprio, de uma história, de uma ancestralidade que é geral e que é particular.

“inexoravelmente” o meu corpo não comunica.




1. Livro de Conceição Evaristo. / 2. Carolina Maria de Jesus. / 3. Livro de Toni Morrison. / 4. Albert Camus.

5. Livro de Djamila Ribeiro. / 6. Maria Dolores Rodriguez. / 7. Poema: Para um comunista negro. / 8. Audre Lorde.

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