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cenas de terror nos redutos da branquitude

parte um


às duas da tarde, em pleno bairro da Graça, uma moça branca branquíssima que entrava em sua residência encontra-se com um terror pouco acessado pela sua condição: lhe foi tomado um pedaço. a bolsa que carregava no ombro foi arrancada à força por um jovem negro de uns dezessete anos, levando os seus cartões de crédito versão infinite e o celular que utilizava para tudo, incluindo o suporte externo da sua memória. ela gritou, gritou, e, desesperada, saiu correndo atras dele, chamando com toda a sua força: PEGA LADRÃO, PEGA LADRÃO! a rua, tão calma e agradável para aquelas vidas que prescindem certa distância do significado de ‘cotidiano’ numa cidade como Salvador, sentiu o alarde. gatos se assustavam com os gritos, corriam de um lado para o outro, tal qual os cachorros micro spitz da vizinhança. mas, mais do que isso, os moradores quietíssimos trabalhados em poemas de neruda, vinho e café gourmet mostravam finalmente as suas caras nas janelas, para, assim, fazerem coro com a jovem apavorada: pega ladrão! pega ladrão! - todos juntos agora. era notório o desespero da casa grande. o medo estampado nos olhos, nas andanças para lá e para cá em suas mini-varandas teladas. pouco tempo depois um rapaz branco, também morador do bairro, perguntou à despossuída o que exatamente havia sido levado. sendo uma bolsa, era mais fácil identificá-lo em meio ao meio mundo de meninos-iguais que viviam ladeira abaixo. ele dizia “se eu pegar, eu mato!”. o rapaz não tinha nenhuma relação com a moça, nem o nome sabia, mas sua empatia não permitiria deixar um crime sem resposta, era preciso que a protegesse em alguma medida. ele ressentiu o tamanho da perda daquela mulher: cartões de crédito versão infinite e um celular-depósito-de-memórias. não é pouca coisa. saiu. ele queria encontrar o rapaz. ela entrou. queria encontrar, em meio ao seu caos quase particular, alguma paz.

minutos depois as janelas foram esvaziando. indignados com a situação e com a aparente desestabilização emocional de uma dos seus, alertavam com pavor aos transeuntes: “cuidado!”. nas entrelinhas, diziam: “eles estão chegando!”. a polícia, tantas vezes mencionada como saída de emergência, não apareceu. se sentiram abandonados pelo Estado: um absurdo!

a senhora que subia para o seu prédio acompanhada de dois cachorros logo após o incidente, contava: “é a segunda vez em uma semana, a quarta em quinze dias. estamos ao léu”. parece que um espectro de realidade tem invadido o bairro. agora há com o que se preocupar. agora tornou-se possível perder. eles - os meninos-iguais - não estão pra brincadeira.



parte dois


na noite de ânimos comportados da sexta-feira, tudo caminhava de acordo com a rotina: luzes amareladas pincelando as gretas, nova mpb tocando nas vitrolas, vinhos, ipa’s, etc. passadas as vinte e três, uma leve escuridão invadia aos pouquinhos os quadrados de vidro vazados dos prédios. estava ficando tarde, era a hora de dormir.

eis que, de repente, um estrondo acorda a vizinhança. vidros se estilhaçando e uma gritaria atravessando as paredes. a iluminação amarela, antes restrita à decoração dos interiores, agora tomava toda a rua. a chama alta podia ser vista a longas distâncias.

do outro lado da avenida, os meninos-iguais apontavam: “ó pra’li, é fogo!”. e também assustados com a magnitude das chamas, alardeavam suas vizinhas que, aos pouquinhos, acordavam e iam para as esquinas compartilhar inquietações: “será que foi uma casa?” “será que alguém morreu?” “meu deus, deve ter perdido tudo!”. de lá, solidarizavam-se com vidas e danos que saberiam no dia seguinte, no jornal das 7.

os prédios ao redor do fogo reuniam todos em gritos comuns - “chamem o bombeiro!”, “evacua! evacua!”. cada qual da sua janela, encontravam-se em prol de uma angústia mal nomeada. quem morava ali? os vizinhos imediatos não sabiam os nomes, mas reconheceram rapidamente os corpos. já haviam sido vistos. à medida que a chama se apagava, o cheiro de fumaça e pó incensava todos os cantos da casa. os gatos, de novo incomodados com o susto, se moviam com tensão, miavam. a vizinhança lentamente se retirava da varanda. vozes embargadas reclamavam da vida e da morte e desse caminhar estreito entre as duas. sentiam, em si, algo sangrar. pouco depois chegaram os bombeiros, verificaram os corpos, reviraram-os. nenhum documento restou.

dois

corpos

brancos

levados como moradores da Graça não identificados. nada restou, nem os nomes.

“é o estilhaço”: a natureza responde.




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